domingo, 30 de agosto de 2009

O acerto de contas com o Patrão


A vida seguia tranquila no más, caso não fosse aquele acontecido "lá pra fora", naquele final de semana em que a gente quase não saiu de lá por conta do barro encarnado escorregadio. Explico. "Lá pra fora", nas bandas de Pinheiro Machado no pampa gaúcho, onde morava o tio Wilson, que não mora mais porque o Patrão Velho já o levou, tem uma terra vermelha que quando chove resvala mais que sabonete. A gente tinha ido numa Belina azul do tio Beto, das primeiras, ela até que era guerreira, só perdia pra Rural que ele tivera antes. Mas voltando, o carro tava entupido de gente, todo mundo com saudade do pessoal, por isso nos tocamos pra Pinheiro (Cacimbinhas). Quase que a Belina não sai de lá. É que o rancho do tio ficava numa descida e pra sair tinha que subir, e muito. Agora, imaginem que resolveu cair um baita aguaceiro, mas foi chuva que era uma barbaridade! Foi aí que a coisa complicou.
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Mas antes de contar da Belina, vou contar outro causo. Era pra ser um final de semana daqueles com uma baita churrascada, espetos de pau, com janela inteira de costela cravados no chão, a cuia passando de mão em mão, um dos primos tocando gaita, o tio Wilson de bombacha, chinelo de couro e facão na mão cuidando da carne. A tia Flor, de lenço na cabeça, fazendo biscoitos de bonecos porque tinha criança visitando, a prima ajudando e falando muito pouco porque era uma chinoca envergonhada. E a gente que ficava na volta contando as novidades da cidade, tagarelando mais que caturrita.
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Mas não foi nada disso. Era tanta, mas tanta água, que a lavoura, que o tio e os primos trabalharam de sol a sol pra conseguir plantar, tava indo água abaixo. O final de semana foi de tristeza. O desespero foi tomando conta. Dias e dias lavorando, desde arar, semear, plantar e cuidar, pra quê? Pra vir uma chuvarada daquelas e acabar com tudo. Trabalho duro, tudo sendo perdido terra abaixo, levado pelas águas. O tio que era falante, que ficava faceiro quando recebia visita, ficara mudo, triste e perdido com seus pensamentos. Remoendo. A tristeza foi virando indignação. Daí para a raiva. E da raiva para a ira. Transtornado, tomado por uma certeza de ter sido vítima da mais completa injustiça, levanta do seu banco de madeira, decidido, abre a porta com fúria e sai pra fora da casa. Olhando pro céu com o cenho fechado e facão empunhado, bradando e vociferando, ele desafia:
- “DESCE PRA BAIXO VELHO DESGRAÇADO!”
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Achei muita graça na época, não tinha vivido pra entender. Hoje lembro dele com carinho e respeito. Respeito sua revolta, ele tinha sua razão.
Volto à Belina. A bichinha quase que não saiu. Pensei que fôssemos ficar presos lá. Um barranco imenso e ela lotada, tinha eu, o tio Beto, dois primos e a tia Zi, não ia “nem a pau”. Pois foi aí que os bois entraram em ação. Lembro como se fosse hoje. O tio Wilson amarrou uma junta de bois na Belina e eles puxaram. Subiram ladeira acima. Dava medo a força que aqueles animais faziam, parecia que ia partir o carro. Lá em cima, depois da vitória, o tio orgulhoso dos bichos, dava uns tapinhas no dorso dos animais. Hoje eu também entendo o carinho dele.
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Saudade dos tios.
Talvez eu também empunhe a minha faca, porque o Patrão Véio também chamou o tio Beto.
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Pati

3 comentários:

Lauro Dieckmann disse...

é 10!
e é uma história de Cacimbinhas!
grande! há muito pouca coisa na literatura sobre a a nossa zona, que fica lá no extremo sul do Brasil. parabéns.

Anônimo disse...

Olá, Patrícia! Te li no Recanto, viajei, senti uma dorzinha no coração e tô aqui pra deixar um abraço especial!

Abraço especial, Patrícia! rsrsrs

Almerinda

Jefferson Dieckmann disse...

Mas, báh! Voltei ao passado, agora! O churrasco com espetos de pau, fincados no chão, as bombachas e o chinelo de couro. As caturritas que, no Sul chamamos carinhosamene de "cocótas", as visitas de domingo na casa dos tios, as bolachas feitas com farinha, açucar e amor. A tua história me envolveu e me fez ter boas lembranças. Obrigado! Um beijo!